Cotistas
Fim de ano é momento de confraternizar e passar
algumas horas juntos como amigos e familiares e ouvir todo o tipo que coisa. Algumas vezes, coisas
boas. Outras, nem tanto. No que diz respeito aos assuntos que me interessam
e que mexem comigo, tive que escutar alguns comentários e piadas sobre
cotistas.
Numa delas, ouvi uma pessoa gritar “cotista” para
uma espécie de charada, onde se descrevia uma pessoa preta, de roupa
preta, chapéu preto, luvas pretas, etc. Noutra, uma pessoa disse com toda a
sinceridade que é contra as cotas porque todos somos iguais.
Escutei com atenção e respeito, mas percebi que, na verdade, o
que falta é apenas informações mais profundas a respeito da história
do povo negro e da política de cotas. Além do nosso problema de memória curta,
principalmente quando o assunto ou a causa não lhes diz respeito e não atinge a sua classe.
Então, resolvi pesquisar um pouco sobre o assunto para que fique registrado que, como a
luta é minha, é meu dever trazer os fatos para que todos entendam.
Vamos lá.
O ano é 1845. Inglaterra, a força-motriz do
abolicionismo, pretendia fomentar um mercado consumidor nas Américas. Para isso
montou um cerco internacional à escravidão e editou a Lei Bill Aberdeen, que
consistia na retenção dos navios transportando cativos da África rumo às
Américas.
Aqui no Brasil, para atender aos ingleses, foi
criada a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico de negros a partir de
1850. Em seguida, vieram a Lei do Ventre Livre (liberdade maquiada aos filhos
de escravos), Lei dos Sexagenários (liberdade aos escravos acima de 65 anos).
Ou seja, o cerco se fechou para a princesa Isabel,
que não teve outra alternativa senão conferir a liberdade aos negros. E a lei
Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888.
Sabe aquilo que nós aprendemos no ensino
fundamental sobre a princesa ter sido a heroína dos negros, discriminados,
perseguidos? É mentira. E sabe por quê? Porque a tal liberdade decretada pela
Lei Áurea foi "para inglês ver", pois o império não adotou qualquer política
pública para negros.
A princesa não executou reforma agrária pró-negros.
Ao invés disso, a terra passou a ser destinada a trabalhadores brancos ou
estrangeiros. Não houve incentivos à alfabetização e qualificação profissional
dos ex-escravos. Assim, não foi possível reduzir o fosso real de formação e
condições de vida entre brancos livres e negros recém-libertos. Não foram formuladas
leis e políticas de promoção da igualdade racial. As classes dominantes não
contribuíram para a inserção dos ex-escravos no novo formato de trabalho.
Ou seja, a escravidão só acabaria MESMO, oficialmente,
se houvesse garantias para o tratamento igualitário de negros e brancos e criar
as condições para que a população negra pudesse ter um tipo de inserção mais
digna na sociedade.
Não só não houve, como a cultura escravocrata e
racista no Brasil transformou a "liberdade" dos negros numa nova
prisão. Isso mesmo. Os negros foram direto para as ruas, favelas e engrossaram
a massa de desempregados ou subempregados.
Esse é o motivo pelo qual o dia 13 de maio não é
comemorado pelo movimento negro: por conta do tratamento dispensado aos que se
tornaram ex-escravos no País. Houve apenas uma abolição formal, mas os negros
continuaram excluídos do processo social.
As mudanças nesse cenário de exclusão e
discriminação estão acontecendo, mas ainda há muito o que se fazer, uma vez que
existe ainda muitas expressões do racismo e da desigualdade no país. No
Congresso, por exemplo, menos de 9% dos parlamentares são negros, comparada à
população que se declara negra no Brasil, que chega a 51%. Fora as
manifestações de racismo nos esportes, principalmente no futebol. A inclusão do
negro ainda é meta.
Portanto, como os negros partiram de um patamar
muito baixo, é necessário acelerar esse processo com ações afirmativas, para
que possamos sentir uma diminuição mais significativa das desigualdades. E a
política de cotas não é nada na frente do grande movimento que precisamos fazer
para reparar a forma traumática como essa abolição aconteceu, deixando a
população negra à própria sorte.
Esses relatos são só a ponta do iceberg. Há muito
na história. Se nós tivéssemos o mesmo compromisso de ir a fundo nas
informações como temos em nos manter "atualizados" e vidrados nas redes sociais,
tenho certeza de que muitos dos embates acabariam. O que eu escrevi aqui ainda é
muito raso, mas explica um pouco o tamanho da crueldade com que o meu povo sofreu e
ainda sofre.
Espero ter levado luz a sua consciência.
Fontes:
Último Segundo - Por que os negros não comemoram o
13 de maio, dia da abolição da escravatura?
Huffpost - Por que não devemos celebrar o 13 de
maio e a Lei Áurea que "aboliu" a escravidão
https://www.huffpostbrasil.com/diego-iraheta/por-que-nao-devemos-celebrar-o-13-de-maio-e-a-lei-aurea-que-abo_a_21669184/
https://www.huffpostbrasil.com/diego-iraheta/por-que-nao-devemos-celebrar-o-13-de-maio-e-a-lei-aurea-que-abo_a_21669184/
Huffpost - Quando um herói nacional é negro: Abdias
do Nascimento e a História que não aprendemos
Carta Capital – Ser contra as cotas raciais e
concordar com a perpetuação do racismo
UFMG.br – Os 10 mitos sobre cotas
https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=53
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